WhatsApp, remédio e envenenamento: perita Beatriz Figueiredo, do DF, conta como investiga feminicídios

06/06/2022 22/06/2022 09:41 803 visualizações

Desde que entrou na Polícia Técnico-Científica do Distrito Federal, há nove anos, a perita Beatriz Figueiredo se dedicou a estudar especialmente questões ligadas à perícia de crimes contra mulheres, como feminicídio  — na época, ainda nem era lei. O interesse pelo assunto acabou levando Beatriz a desenvolver um protocolo que, depois de aplicado entre peritos de todo a região, fez aumentar em 550% os registros de feminicídio ao garantir a classificação adequada.

A mudança consiste, basicamente, em começar a investigar toda morte de mulher como um possível feminicídio, buscando no local do crime evidências de violências anteriores à morte dela, como cabelo cortado e roupas rasgadas. Depois, se essas evidências não se confirmarem, o crime passa a ser investigado como homicídio comum.

 

"Quando tratamos a morte de uma mulher como um possível feminicídio desde o começo, liga o alerta para todos os profissionais de segurança que vão atuar naquela investigação", explica, em entrevista a Universa.

 

No final de maio, Beatriz participou do Congresso Nacional de Criminalística, promovido pelo Sindicato dos Peritos Criminais do Estado de São Paulo, e compartilhou com profissionais de todo o Brasil o protocolo que aplica no Distrito Federal —que acabou virando sua tese de mestrado e se tornará um livro, que deve ser publicado ainda neste ano e será usado para ampliar o método para todo o país.

 

Como o protocolo funciona

 

 Hoje, todas as práticas desenvolvidas por Beatriz são aplicadas com rigor pela perícia do Distrito Federal.

 

Funciona assim: a Polícia Militar ou o SAMU são os primeiros a chegar em uma cena de homicídio e comunicam a Polícia Civil. Quando o delegado chega ao local, solicita a perícia —neste momento, ele precisa cadastrar a ocorrência de alguma forma, para orientar os peritos do que se trata, se a cena à primeira vista parece um acidente, um suicídio, um homicídio.

 

"Se o cadáver é de uma mulher, seja ela cis ou trans, a autoridade policial automaticamente deve pedir a perícia para um caso de feminicídio" —depois, se as evidências não apontarem para isso, a hipótese é descartada e o crime passa a ser investigado como um homicídio comum, explica Beatriz.

 

"Não são práticas que dificultam o trabalho dos peritos e não necessariamente dependem de equipamentos caros e tecnológicos Para funcionar, basta que o perito coloque uma perspectiva de gênero em sua atuação", fala.

 

Fezes, remédios e conversas no WhatsApp

 

Durante a conversa com Universa, Beatriz listou exemplos do que, exatamente, peritos devem buscar quando investigam um possível caso de feminicídio.

 

·  Conversas no celular com amigas próximas ou com alguém com um nome que denota vínculo afetivo, como "amor" ou "namorado", para entender se aquela era uma relação violenta, se o casal brigava muito;

 

· O histórico de pesquisas da vítima na internet --se ela estava em uma situação de risco, é muito provável que tenha pesquisado passagens, reserva em hotéis, ou outras formas de ajuda e frases do tipo "como denunciar";

 

· Nas fezes, é preciso investigar sinais de envenenamento, como a ingestão de substâncias usadas para dopá-la, de sangue e esperma, que podem indicar violência sexual;

 

· Indícios claros de desprezo ao feminino, como agressões direcionadas ao rosto ou à região íntima, violência sexual, cabelos cortados;

 

· Histórico médico ou uso excessivo de remédios para dor que podem indicar episódios de agressão física, assim como indícios de depressão, ansiedade; e

 

·  Outros sinais de violência simbólica, como animais de estimação torturados, roupas rasgadas, cartas, diários, etc.

 

"Peritos devem ter olhar específico para crimes de gênero"

 

Em 2020, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lançou um protocolo de investigações e perícia de feminicídio, e Beatriz foi convidada por um colega para criar um curso sobre o assunto, que seria disponibilizado para profissionais de segurança pública brasileiros.

 

"Quando sentei para desenhar o projeto foi que notei a ausência de materiais técnicos nessa linha. Temos publicações incríveis no Brasil sobre feminicídio, mas para as áreas de humanidades. Agora, se eu sou um perito e vou analisar um local de crime, não encontro informações técnicas a respeito", lembra.

 

Ao longo de três meses, Beatriz adaptou todas as práticas que já existem publicadas a respeito de processamento de locais de homicídios para serem aplicadas a casos de crimes de gênero.

 

Além dos indícios encontrados nas cenas dos crimes, a perita explica que há outros sinais que podem indicar violência contra a mulher. Por exemplo, o histórico médico. No caso de um homem que morreu com um tiro dentro de casa, é uma informação que pode não importar tanto. Mas, se essa mesma vítima for uma mulher, o fato de ela ter ido ao hospital um ano antes cheia de hematomas pode indicar violência doméstica.

 

Protocolo enfrentou resistência

 

Em maio, Beatriz foi promovida a diretora de Perícias Externas do DF. Agora, mulheres são maioria na chefia dos departamentos da perícia do estado —são quatro mulheres e três homens ocupando cargos de direção.

 

"É um caminho, as portas estão se abrindo", comemora, ao lembrar que, quando a lei de feminicídio foi sancionada, em 2015, havia muita resistência de profissionais mais velhos em considerá-la.

 

"No começo, houve muita resistência para as autoridades periciarem o local como sendo de um feminicídio. Era tudo muito novo. Eu ouvia coisas como: 'Ah, mas é só uma qualificadora, continua sendo um homicídio'. Sim, mas é um homicídio diferente, não é um latrocínio, essas mulheres são mortas porque são mulheres", destaca. ( Fonte: Universa Uol).